Falar de Beiru não é apenas falar da história de um grande líder negro e de um bairro com cerca de 200 mil habitantes de Salvador, mas também é falar diretamente da história de vida de cada morador. Foi o que mostrou o seminário realizado no Centro de Integração Familiar – Ceifar, em Beiru, Salvador – BA, no sábado (24), com a participação de 20 representantes da comunidade, para criação do conselho gestor do Ponto de Memória Museu do Beiru.
O encontro foi acalorado, porque não há como falar de memórias sem tocar em feridas e porque museu, além de ser espaço de investigação, preservação e comunicação, também é lugar de discussão, embates e resolução de conflitos da comunidade. Morador do bairro há 32 anos, Roberto dos Santos Freitas, pesquisador da cultura afro-brasileira, presidente da Associação Cultural Comunitária e Carnavalesca Mundo Negro e da Associação dos blocos afros da Bahia, disse que sua militância sempre foi por melhorias para a comunidade negra e que uma das suas grandes lutas é para que não deixem apagar a memória de Beiru. Para ele, o museu ajudará a mostrar a importante histórica deste líder para a identidade do bairro.
“O sangue corre na minha veia quando ouço falar em Beiru. É preciso resgatar a memória de nossa história afro-brasileira. Não podemos deixar que o nome de um dos primeiros donos das terras seja trocado por Tancredo Neves. Em nossa comunidade há pessoas de outros estados da Bahia, já são poucos os nativos. E o povo chega e fala que mora em Tancredo Neves porque acha o nome bonito.”
Roberto contou que a Associação Mundo Negro se uniu a outras entidades por toda essa luta e vem divulgando em escolas uma cartilha sobre a história de Beiru , organizando anualmente a Marcha do Beiru, o Campeonato de Liga Esportiva do Beiru. Segundo ele, também pretendem criar a rádio comunitária “A voz do Beiru” e conseguir um a estátua junto ao IBRAM em homenagem ao líder negro em novembro deste ano, mês da consciência negra.
Na ocasião, a professora e militante de direitos humanos e sociais Norma Ribeiro disse que é inadmissível se referir ao bairro como Tancredo Neves. “Beiru não pode ficar a sombra em um momento político nacional de mudança da história. Não podemos deixar que adversários se apropriem de nossa memória, do museu. Não podemos esquecer do massacre cometido pela Igreja Católica contra o nosso povo negro, das igrejas que foram construídas em cima dos terreiros de Candomblé, dos sangues que foram derramados. É preciso ter um discurso único neste momento a favor do Beiru.”
Hilário de Araújo, um dos militantes da luta pela história e pelo nome do precursor africano, disse que o museu homenageará o maior líder político da região e que, a partir deste seminário, se sente dentro do processo. “Estava me sentido traído. Mas agora, sim, me sinto participando desse museu. Agora sei que todos terão a mesma relevância para sua construção.”
A relação histórica entre os terreiros e a Igreja Católica ainda deixa marcas na comunidade, que é marcada pela diversidade religiosa. Jean Santos, pedagogo, disse que mesmo conhecendo e respeitando a história do líder negro, não pode apagar a sua história com a Igreja Católica, que foi um instituição que devolveu dignidade à sua vida. Ele também mencionou a mudança de visão sobre museu a partir do envolvimento com o projeto Pontos de Memória. “Achava que museu era coisa de gente rica, branca. Quando ia a um museu me perguntavam onde estava a vassoura. Mas agora vejo que pode ser diferente.”
O fechamento do seminário contou com a voz e violão do músico Tom com a composição “Relíquia da Terra” e com a fala do consultor do projeto Pontos de Memória, Wélcio de Toledo, que esclareceu todas as dúvidas. Em consenso, todos perceberam um objetivo em comum: a luta pela comunidade e, agora, a luta também pelo Museu do Beiru.
Logo após foi ratificada a função de cada integrante do conselho gestor: Presidente – Norma Ribeiro; vice-presidente – Jean Santos; Conselho Fiscal – Roberto dos Santos Freitas, Maria Lúcia Santana, Jairo Augusto e Hilário Araújo. As funções de tesoureiro e secretária ficaram por definir no próximo encontro.
Beiru – Foi um escravo da fazenda Campo Seco, conhecido por Preto Beiru, cujo nome em ioruba, sua língua nativa, se escreve GBEIRU. Em 1845, ele ganhou parte da fazenda que pertencia à família Silva Garcia. Ele pôde então formar um quilombo e tornar-se assim uma liderança negra para os escravos da fazenda, ensinando à família Silva Garcia a viver ao lado do negro sem maltratá-lo. Preto Beirú nasceu em Oió, uma cidade da Nigéria, segundo registros na escritura das terras que receu da família Silva Garcaia.
Os africanos escravizados em Salvador criaram um território próprio de resistência ao poder dos donos das fazendas, cujos limites ainda são desconhecidos. Atualmente, a maioria dos bairros continua sendo uma área de grande concentração de negros, áreas também conhecidas como quilombos urbanos, por preservarem a herança daqueles herdeiros africanos.
Pontos de Memória – O Ibram acredita que o direito à memória precisa ser conquistado, mantido e exercido como direito de cidadania, como direito que precisa ser democratizado e comunicado entre os diferentes grupos sociais existentes no Brasil. É por esse direito e luta que está desenvolvendo o Projeto Pontos de Memória – resultado de parceria com o Programa Mais Cultura e, agora, com a Secretaria de Cidadania Cultural , do Ministério da Cultura, o Programa Nacional de Segurança com Cidadania – Pronasci, do Ministério da Justiça, e a Organização dos Estados Ibero-americanos.
O projeto vem apoiando ações de memória em comunidades de todo o Brasil. Estão em fase de consolidação 12 Pontos de Memória, situados em comunidades populares nas cidades de Belém- PA, Belo Horizonte – MG, Brasília – DF, Curitiba – PR, Fortaleza – CE, Maceió – AL, Porto Alegre – RS, Recife – PE, Rio de Janeiro, Salvador – BA, São Paulo – SP, Vitória – ES.
Também estão em desenvolvimento, com apoio do Ibram, iniciativas comunitárias a partir de realização de oficinas temáticas e consultorias técnicas a grupos envolvidos nas ações de preservação da memória local. Como exemplo de tais iniciativas, o Ecomuseu da Amazônia (Belém – PA), os Museus Sankofa da Rocinha e Vila do Horto (Rio de Janeiro – RJ) e o Museu Vivo do São Bento (Duque de Caxias – RJ).